A solução Sinai: repensando Gaza no período pós-Oslo

Lina Attalah

Tradução: Mateus Forli

Originalmente publicado em 25 de outubro de 2023 no jornal Mada Msar

No dia 24 de outubro, um documento vazado do gabinete da Ministra de Inteligência israelense, Gila Gamliel, indicava que uma solução duradoura para a Faixa de Gaza no pós-guerra teria de incluir a transferência dos palestinos para o Sinai, no Egito. De acordo com o documento obtido pelo site de notícias israelense Calcalist, a transferência incluiria três passos: a criação de cidades de tendas no Sinai, formação de um corredor humanitário e a construção de cidades no Norte do Sinai para os novos refugiados. Além disso, seria criada no Egito, a sul da fronteira com Israel, “uma zona estéril” com vários quilômetros de largura para impedir o regresso dos palestinos.

O Ministério, segundo observadores, não tem muito peso no governo, com os aparelhos de inteligência operando fora do seu quadro. “A existência do documento e a ideia em si não são uma surpresa. Mas o vazamento de informações e a mera prova de sua existencia é interessante”, diz Daniel Levy, presidente do Middle East Project, com sede em Londres, e antigo negociador de paz dos primeiros-ministros israelenses Ehud Barak e Yitzhak Rabin.

Pouco antes, em 18 de outubro, o Presidente Abdel Fattah al-Sisi proferiu um discurso improvisado sobre o ataque militar israelense em curso contra a Faixa de Gaza ocorrido quase duas semanas após a incursão do Hamas em Israel.

“Transferir os refugiados [palestinos] da Faixa de Gaza para o Sinai equivaleria simplesmente a deslocar a sua resistência… transformando o Sinai numa base para operações contra Israel e concedendo a Israel o direito de se defender a si e à sua segurança nacional, conduzindo ataques em terras egípcias como retaliação.”

A rejeição veemente de Sisi a uma “segunda nakba”, especialmente depois dos esforços diplomáticos liderados pelos EUA para pressionar o Egito a criar um corredor humanitário, foi transformada numa tentativa de angariar o apoio da opinião pública ao seu governo. A menos de um mês das eleições presidenciais, anunciadas às pressas em meio a uma crise econômica devastadora, Sisi apelou por manifestações populares para apoiar a sua posição. Como resultado de seu apelo, algumas milhares de pessoas participaram nas manifestações de 20 de outubro, principalmente no Cairo.

A posição de Sisi é coerente com uma posição há muito defendida por governantes egípcios anteriores que, historicamente, rejeitaram quaisquer tentativas israelense de deslocar palestinos para o Sinai. Resta saber se a atual campanha militar de Israel contra Gaza conseguirá ou não tornar o plano de deslocamento um fato consumado.

Neste contexto, meios de comunicação egípcias, pertencentes a aparelhos de segurança próximos de Sisi, têm publicado e transmitido reportagens pormenorizadas sobre um antigo projeto israelense de deslocamento de palestinos de Gaza para a Península do Sinai. A maior parte deles afirmam ter revelado o que chamam de “plano Eiland”, em homenagem a um major-general reformado, Giora Eiland, chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel entre 2004 e 2006. Os meios de comunicação alinhados ao Estado egípcio fizeram questão de destacar a oposição intransigente de Sisi ao plano, mesmo que este inclua ofertas de alívio da dívida ou pacotes de ajuda financeira por parte da administração Joe Biden.

“É como se estivessem todos lendo o mesmo roteiro”, disse um jornalista egípcio e observador de meios de comunicação que falou ao Mada Masr sob condição de anonimato.

Em que consiste o plano Eiland? A proposta do ex-major-general de esvaziar a Faixa de Gaza como solução estratégica para Israel remonta há quase 20 anos. Nesta época, o primeiro-ministro israelense Ariel Sharon estava preparando um plano de desengajamento unilateral da Faixa de Gaza. Afirmou que a sua iniciativa se enquadrava nos parâmetros do Roteiro para a Paz de 2003 – supervisionado pelo chamado quarteto formado pela União Europeia, a Organização das Nações Unidas, a Rússia e, mais importante, os Estados Unidos – que tinha como objetivo pôr fim à Segunda Intifada.

De acordo com uma biografia escrita pelo seu filho, Sharon acreditava que o plano de desengajamento isolaria a Faixa de Gaza, mesmo às custas das colônias israelenses já existentes na região. Desengajar de Gaza liberaria, então, recursos para expandir as colônias israelenses na Cisjordânia, um prêmio muito maior aos olhos do movimento dos colonos e uma prioridade mais elevada para o rival de Sharon no Partido Likud, Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro. Embora tenha participado na gestão de Sharon, durante a retirada de Gaza em 2005, Eiland foi um crítico conhecido da iniciativa, levando à sua renúncia do Conselho.

Na mesma época, Eiland desenvolveu um esquema alternativo para pacificar a Faixa de Gaza. Segundo Elliot Abrams, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA durante a administração de George W. Bush Jr. que trabalhou em estreita colaboração com os seus homólogos israelenses na elaboração do plano de retirada, Eiland procurou transferir os palestinos de Gaza para o Sinai. Já em 2004, propôs que o Egito abrisse mão de um território quase cinco vezes maior do que Gaza para absorver uma parte significativa dos palestinos da Faixa. Em troca, o Cairo seria compensado com terrenos no sudeste de Israel que permitiriam a construção de um túnel viário ligando o Egito à Jordânia.

No entanto, o ex-Presidente Hosni Mubarak recusou ceder qualquer território soberano do Egito. Segundo Hani al-Masry, diretor do Centro Palestino de Investigação Política e Estudos Estratégicos (Masarat), o plano foi alvo de resistência de todas as partes árabes interessadas. “Os países árabes são sensíveis a esta questão”, disse, “especialmente o Egito e a Jordânia”.

Esta pode não ter sido a primeira vez que Israel apresentou a Mubarak uma oferta deste gênero. Em 2017, Mubarak afirmou que rejeitou propostas semelhantes de Israel em anos anteriores. Em 2010, ele afirmou que o governo de Netanyahu propôs reassentar palestinos no Sinai como parte de uma troca de terras entre Israel e Egito, que Mubarak recusou. Os seus comentários surgiram depois de a BBC Árabe ter noticiado que Mubarak tinha concordado em aceitar refugiados palestinos no seu país em 1983, como parte de uma saída mais ampla para pôr fim ao conflito israelo-árabe – uma afirmação que o presidente deposto negou categoricamente.

Apesar do pouco apoio à sua proposta para o Sinai, Eiland continuou desempenhando um papel importante no pensamento militar e estratégico israelense dos anos seguintes. Segundo o conhecido Relatório Goldstone – fruto de uma missão de apuração de fatos da ONU, criada para investigar as violações de direito internacional durante o bombardeio israelense contra Gaza em 2009 – a campanha militar entitulada Operação Chumbo Fundido refletiu uma “mudança qualitativa de operações relativamente concentradas para uma destruição maciça e deliberada”. De fato, esta nova estratégia resultou de uma mudança no pensamento militar delineada pelo chefe do comando norte das Forças de Defesa de Israel durante a Guerra do Líbano de 2006 e implementada pela primeira vez no bairro de Dahiyeh, um reduto do Hezbollah no sul de Beirute.

A doutrina Dahiyeh, como ficou conhecida, baseava-se na necessidade de destruir as infraestruturas civis usadas pelas forças de guerrilha inimigas, visando paralisá-las e eliminá-las. Nos anos que se seguiram, um grupo de ex-oficiais militares, incluindo Eiland, continuou a desenvolver os conceitos fundamentais dessa doutrina. Em um artigo de 2008, Eiland afirmou que qualquer guerra futura na frente norte de Israel resultaria na “eliminação das forças armadas libanesas, destruição das infraestruturas nacionais e intenso sofrimento para a população”.

Nas últimas semanas, estas ideias parecem ter ganhado um novo fôlego. Em meio à ofensiva militar de Israel contra Gaza, Eiland encontrou uma oportunidade para combinar a sua estratégia militar, que enfatiza a destruição desproporcional e intencional de infraestruturas e populações civis, e a sua proposta de transferência forçada de palestinos para o Sinai em uma única visão.

Em artigo de opinião publicado no jornal israelense Fathom, Eiland escreveu que o ataque do Hamas a Israel, que resultou em mais de 1400 mortos israelenses e na captura de mais de 200 prisioneiros, é diferente de tudo o que Israel viveu nos seus 75 anos de história. Para evitar uma repetição, afirmou, o Hamas tem de ser esmagado.

Eiland acredita que a tão esperada ofensiva terrestre israelense em Gaza será demasiado dispendiosa, uma vez que as Forças de Defesa de Israel poderão ter dificuldade para derrotar 20.000 combatentes do Hamas e, ao mesmo tempo, lidar com outras frentes abertas pelo Irã e pelo Hezbollah. A opção mais segura para Israel seria, portanto, aquilo a que Eiland chama um “cerco dramático, contínuo e rigoroso a Gaza”.

Segundo Eiland, o cerco de 16 anos que precedeu esta guerra não foi apertado o suficiente. Defende que Israel foi ingênuo, ou mesmo estúpido, ao acreditar que poderia permitir a passagem limitada de materiais para Gaza, bem como a entrada de habitantes de Gaza em Israel para trabalhar. Em vez disso, Israel deveria encorajar os palestinos a abandonar a Faixa de Gaza. “A população de Gaza terá de sair – de forma temporária ou permanente – através da fronteira com o Egito”, escreve. “Quando as pessoas tiverem saido, e os únicos que restarem em Gaza forem o Hamas, e quando os alimentos e a água tiverem acabado – e também podemos bombardear as instalações de água em Gaza para que não haja água – então, a esta altura, o Hamas será destruído por completo, se renderá ou concordará em deixar Gaza, tal como Arafat foi forçado a deixar Beirute depois de um cerco israelense.”

“Israel enviou uma advertência severa ao Egito e deixou claro que não permitiria que ajuda humanitária vinda do Egito entrasse em Gaza. Israel precisa criar uma crise humanitária em Gaza, forçando dezenas de milhares ou até centenas de milhares a buscarem refúgio no Egito ou no Golfo.”

Em outro artigo de opinião publicado no site israelense Ynetnews, Eiland escreve que a criação de uma crise humanitária em Gaza obrigará “dezenas de milhares ou mesmo centenas de milhares a procurar refúgio no Egito ou no Golfo”. O ideal, prossegue, seria que essa evacuação incluísse “toda a população” de Gaza.

Embora seja difícil determinar a influência que generais reformados como Eiland exercem sobre o gabinete de guerra israelense, as táticas utilizadas pelas Forças de Defesa Israelenses no seu atual ataque a Gaza parecem estar de acordo com muito do que ele prescreveu. Israel castigou de forma coletiva mais de dois milhões de palestinos em Gaza, bloqueando o fornecimento de alimentos, água, medicamentos e combustível aos residentes da Faixa. Além disso, ordenou a evacuação de mais de um milhão de palestinos da parte norte da Faixa para o sul. De acordo com Nimer Sultany, palestino que ensina direito público na Escola de Estudos Orientais e Africanos, sediada em Londres, há quatro cidades no norte de Gaza que foram quase apagadas até o fim com o ataque israelense: Cidade de Gaza, Jabalia, Beit Hanoun e Beit Lahiyya. Ele afirmou que tais ações constituem um deslocamento forçado através do genocídio, explicando que a definição de genocídio inclui a destruição parcial ou total de um grupo de pessoas com base na sua identidade nacional, racial, étnica ou religiosa.

Cidades do norte da Faixa de Gaza que foram quase apagadas até o fim com o ataque israelense

“A expulsão dos palestinos tem raízes no sionismo”, afirma Sultany, sublinhando que, em períodos de tensão, o público israelense acredita cada vez mais nas ações do seu governo de extrema-direita. “Uma guerra pautada em termos existencialistas cria uma janela de oportunidade para a expulsão de palestinos”, afirma.

Segundo Sultany, o exército israelense procura atingir a infraestrutura de toda a Faixa de Gaza para destruir qualquer resistência armada – uma abordagem coerente com a doutrina Dahiyeh. No entanto, esta abordagem também viola o direito internacional, em particular no que diz respeito à obrigação de Israel de responder de forma proporcional e de proteger civis – uma obrigação que continua a ser aplicável no contexto de uma ocupação. Com as nações ocidentais demonstrando total apoio a Israel, está se pavimentando o caminho para os deslocamentos em massa.

As recomendações de Eiland, que combinam uma crise humanitária de deliberação induzida com um programa de expulsão, foram também reproduzidas por outros estrategistas em Israel.

Em um artigo publicado na semana passada pelo Instituto Misgav para a Segurança Nacional e Estratégia Sionista, Rafael BenLevi argumenta que toda uma geração que vive atualmente em Gaza foi criada com a ideologia do Hamas. Mesmo que o Hamas seja destruído, diz ele, continuará havendo hostilidade de Gaza face a Israel. Por isso, Israel não conseguirá instalar em Gaza uma autoridade governamental complacente – como fez na Cisjordânia com o Estado da Palestina. Por essa razão, a única solução para Israel é “expulsar a população de Gaza para o Sinai e lançar uma iniciativa internacional para aceitar pessoas deslocadas de Gaza em países estrangeiros”. Para alcançar este resultado, os EUA devem pressionar o Egito, a Turquia, o Qatar e outros países a facilitar a transferência de refugiados palestinos de Gaza, conclui BenLevi.

“A linguagem genocida em Israel hoje representa uma derrocada completa ao inferno”, diz Levy. “Isto faz parte da remoção permanente dos palestinos desta pequena parte da Palestina histórica”. Descreve o que se passa em Gaza como algo “quantitativa e qualitativamente diferente, em termos do sangue, do deslocamento e do apoio ocidental”.

E o cenário de deslocamento pode estender-se a outros locais. “Aqueles que se opuseram à retirada israelense de Gaza entenderam que, ao deslocar mais de dois milhões de palestinos das considerações espaciais e demográficas, torna-se mais fácil imaginar a replicação deste cenário”, diz Levy. “A anexação e a nakba em outros locais são agora objetivos mais realistas.”

Levy sugere que as prisões em massa, as detenções administrativas e os assassinatos na Cisjordânia podem ser acompanhados por ainda mais operações israelenses, destinadas a provocar mais deslocamentos de palestinos para além da Faixa de Gaza.

Antes da incursão do Hamas e das suas consequências, já estavam em curso esforços mais moderados para induzir o deslocamento de palestinos da Faixa de Gaza. “Antes desta última guerra, o Egito vinha preparando uma área de 1260 km para investimentos e projetos industriais, onde os palestinos de Gaza poderiam trabalhar”, diz Masry. “É por isso que o porto de Arish está sendo construído, assim como o aeroporto. Não se trata necessariamente de um projeto de migração, mas, como se diz, wayn btorzo’ btolzo’ (onde se ganha dinheiro, se fica)”.

No entanto, segundo Masry, a guerra atual vai com certeza fazer descarrilar este plano, levando Israel a encontrar outra forma de cumprir o seu objetivo de deslocar os palestinos de Gaza. “Se, no passado, a tentativa máxima era alargar a Faixa de Gaza para os palestinos”, diz, “agora, o mínimo que Israel vai aceitar é torná-la menor, instalando zonas-tampão onde as pessoas não serão autorizadas a viver, como no norte da Faixa. Esta é a alternativa ao deslocamento total”.

No entanto, Masry continua a acreditar que as deliberações sobre o antigo plano foram postas em cima da mesa durante a primeira fase da shuttle diplomacy americana, quando o Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, foi enviado para a região em 12 de outubro. De qualquer modo, se a guerra persistir por muito tempo, Masry e outros acreditam que os palestinos acabarão por partir, especialmente os que têm oportunidades de emprego em outros locais.

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