Contrabando Editorial

Mais de 40 anos de turbulência abrasiva se passaram desde 1923. Para o destino da revolução bolchevique, que tateava sua primeira década de existência, foi um ano de importância ímpar, ponto de encontro para diferentes eventos-chave. Seu alcance foi suficiente para influenciar a vida em todo o globo, moldando desafios que duram até hoje.

A “Nova Política Econômica”, adotada precipitadamente dois anos antes por Lenin, mostrava os primeiros resultados positivos, mas também dificuldades e complexidades. O próprio Lenin, por motivos de saúde, estava na prática removido da direção partidária, da revolução e do novo Estado cujo curso, em última instância, ele sempre determinou; durante o início do ano seguinte, sua vida se encerraria após uma batalha fútil e furiosa, em que tentava dissipar a densa névoa burocrática espalhada por todos os lados, que obscurecia a aguardada luz da revolução. Em setembro de 1923, o fracasso de uma última tentativa de levante comunista na Alemanha arrefeceu o impulso revolucionário do pós-guerra que alimentava as expectativas de salvação de todos os bolcheviques.

Intimamente conectado a esses três eventos estava a irrupção, durante o mesmo ano, do conflito mais fatídico na história do bolchevismo e de sua revolução – o conflito entre Trotsky e os profissionais do partido. O Novo Curso foi o primeiro anúncio deste embate.

Desde então, uma ampla e rica literatura foi redigida sobre o conflito e seus desenlaces. O trabalho sério se sobrepôs ao trivial, a revelação sobre a falsificação e o entendimento sobre a ignorância. O estudante da política, o acadêmico ou o estadista tem hoje material em abundância que não existia nos anos 1920[1]. Neste texto, portanto, pode ser útil reiterar um aspecto pouco examinado na obra de Trotsky.

No Novo Curso, Trotsky insiste que a doença do burocratismo, que havia se espalhado intensamente ao longo e depois da guerra civil, poderia ser curada apenas pela restauração dos direitos democráticos dos membros do partido governante, os bolcheviques. Obviamente isto significava, principalmente para o próprio Trotsky, a substituição de um sistema de nomeação por um sistema de eleição. No primeiro, os funcionários são selecionados por seus superiores hierárquicos sem referência na base e, portanto, estando fora de seu controle. Já no segundo, os funcionários são escolhidos pela base, sujeitando-se ao controle por debaixo.

Mas o apelo de Trotsky restringia-se a uma pequena parcela da população – uma minoria na classe trabalhadora e que era ainda menor entre os camponeses –, os membros do único partido legalizado, os bolcheviques. Não ocorreu nem mesmo a Trotsky que esses direitos democráticos deveriam ser estendidos não só a toda classe trabalhadora, mas também a toda população, mesmo que por um período relativamente indefinido. “Somos o único partido no país”, ele diz, “e, em um período de ditadura, não poderia ser diferente.”

O conceito que limitava aos bolcheviques o monopólio legal da existência política não era único a Trotsky. Longe disso. Tal conceito era, sem dúvida, parte da doutrina bolchevique durante o período da revolução. Por outro lado, Lenin afirmava que entre as virtudes do sistema soviético de governo estava a possibilidade de transferência pacífica de poder entre partidos políticos que competiam entre si. Durante a guerra civil ocorre a mudança. Todos os outros partidos que pegaram em armas contra o regime bolchevique ou mesmo aqueles que não romperam claramente com eles foram simplesmente proscritos. Essa decisão, compreensível no momento e de forma alguma inédita na História, foi, contudo, erguida a um dogma inquestionável, expresso com ironia nas palavras de um dirigente bolchevique, segundo o qual havia amplo espaço na Rússia para muitos partidos, um no poder e os outros na prisão. Neste novo dogma, Lenin insistiu firmemente. Todos os outros bolcheviques, com raras exceções, adotaram a mesma posição até ela ser simplesmente aceita enquanto crença revolucionária. Trotsky não foi uma das exceções. Ele também assumiu esse pressuposto.

Os bolcheviques – Trotsky, seus apoiadores, seus opositores e seus aliados internacionais – não deram sinal algum de perceberem a incompatibilidade entre o monopólio legal por um partido político e seus direitos democráticos, ou o direito de escolha desde o início para o povo ou até mesmo para a classe trabalhadora. Ao negar direitos democráticos a quem estava fora do partido, mais cedo ou mais tarde, se negaria àqueles dentro dele. Há uma lei que alicerça a política: toda diferença séria de opinião em um partido exige direito de apelação – direta ou indireta, implícita ou explícita, deliberada ou não-intencional – para um ou outro segmento de pessoas do lado de fora desse partido, uma atenção a seus interesses e, inevitavelmente, expressões de simpatia e apoio. A única forma até agora construída para impedir a intervenção política dos “de fora” é impedir o surgimento de diferenças de posição entre os “de dentro”, ou entre uma “elite”. Impedir essas diferenças de acontecerem, ou, ao menos, de aparecerem, só é possível negando os direitos democráticos, a vida política real, assim como a capacidade de ação dos “de dentro”.

Trotsky se agarrou a esse novo dogma até o fim de sua filiação ao partido bolchevique. Nas palavras de conclusão da Plataforma da Oposição de 1927, do qual foi expulso logo após sua redação, ele afirmou que “decididamente condenamos o slogan ‘dois partidos’ como um slogan de aventureiros”[2]. Ainda assim, ele reviu essa posição a partir das novas circunstâncias e novas reflexões, mesmo que tal mudança tenha sido gradual, muito gradual, e insuficiente para o momento. Pouco mais de um ano após ser expulso do partido, ele foi obrigado a se defender de seus próprios colegas quando propôs que a “direita” bukharinista, que rompia com Stalin, tivesse o direito de apresentar suas perspectivas aos órgãos partidários. Karl Radek e outros conhecidos amigos de Trotsky, eles mesmos deportados por Stalin, denunciaram a proposta de Trotsky como “contrarrevolucionária” e “kulakista” (apesar de Bukharin na época ainda dirigir o partido!), rompendo na ocasião com Trotsky para aderir a Stalin.

Apenas no final de 1933, após a catástrofe na Alemanha, que Trotsky rompe pela primeira vez com o dogma em torno do monopólio da representação política pelo partido bolchevique. Com o questionável argumento de que o partido oficial estava morto, ele defendeu a formação de um novo Partido Comunista na Alemanha. Era tarde demais até mesmo para essa frágil convocação. Três anos mais tarde, em seu último grande trabalho sobre a Rússia, A Revolução Traída, ele abandona o dogma de forma explícita e enfática. Durante a guerra civil, escreve:

Os partidos da oposição foram, um após o outro, suprimidos. Os chefes do bolchevismo viram nessas medidas, em evidente contradição com o espírito da democracia soviética, decisões não de princípio, mas necessidades pontuais de defesa.[3]

O argumento é questionável, pois, na prática, ele se tornou um princípio da revolução. De qualquer forma, Trotsky continua:

A proibição dos partidos, outrora uma medida provisória, tornou-se princípio. (…) Não se encontrará em toda história política um único partido a representar uma única classe, ao menos que se consente em tomar uma ficção policial enquanto verdadeira.[4]

Com a reavaliação vem seu próximo passo, dessa vez no programa que ele escreve em meados de 1938 para a tentativa de Quarta Internacional que buscou fundar:

A democratização dos Sovietes é inconcebível sem a legalização dos partidos soviéticos. Os próprios operários e camponeses, mediante votação livre, mostrarão quais partidos são soviéticos.[5]

A segunda parte dessa fórmula ainda falha no excesso de prudência e ambiguidade. Mas Trotsky com certeza caminhou uma longa distância em relação aos seus primeiros dias de luta em 1923.

O quanto mais ele teria caminhado, e em que direção, ninguém sabe. Acho que especulações sobre esses temas são inúteis. Grandes figuras históricas, e considero Trotsky uma delas, não precisam que seus admiradores o adornem com vestimentas que não usaram nos seus dias de triunfo ou dificuldade, ou que jamais teriam vestido se tivessem pela frente mais anos do que tiveram. Existem críticos, em amplo número e certamente muito rigorosos, prontos para detalhar as deficiências e atrasos de Trotsky na luta contra o crescimento do totalitarismo stalinista, para apontar que outros antes dele combateram essa corrente primeiro ou de forma mais consistente. Pode haver até alguma verdade nesse rigor. Porém, talvez vale a pena lembrar que, ao longo do conflito, a grande maioria dos que moldavam a opinião, conservadores, liberais ou radicais, tendiam a Stalin e não a Trotsky, especialmente nos dias de desilusões universalizadas… Mas isso foi ontem. Muito mudou na Rússia desde a morte do principal antagonista de Trotsky. O direito de escolher do povo russo – o direito democrático de selecionar livremente seus representantes, seus líderes e a política que governará sua nação em casa e no exterior – segue inacessível a eles hoje como era ontem. No amanhã em que estiver acessível a todos, parece impossível acreditar que não irão relembrar o nome de Trotsky como um dos grandes pioneiros nessa conquista.

 

*Texto de autoria de Max Shachtman para a introdução do Novo Curso, de Leon Trotsky, publicada pela University of Michigan Press, Ann Arbor, 1965.

 

 

[1] No meu livro “A luta pelo Novo Curso”, que já possui mais de duas décadas e exige alguma atualização, apresentei minha descrição crítica dos desdobramentos daquele conflito e seu significado. Ver A luta pelo Novo Curso, Max Shachtman. Nova York: New International Publishing Co., 1943.

[2] Leon Trotsky, Platform of the Joint Opposition, 1927. Reino Unido: Indexbook, 1973

[3] Leon Trotsky, A Revolução Traída. São Paulo: Global Editora, 1980, p. 69

[4] Leon Trotsky, A Revolução Traída. São Paulo: Global Editora, 1980, p. 185

[5] Leon Trotsky, Programa de transição para a revolução socialista: a agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional. São Paulo: Editora Sunderman, 2017, p. 95

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