Contrabando Editorial

Joseph Daher

Em agosto de 2011, diversos grupos armados fundamentalistas islâmicos despontaram em Damasco e no norte da Síria. Nesse contexto, o Estado Islâmico do Iraque enviou um alto comandante, Abu Muhammad Jolani, natural de Damasco, junto com outros seis dirigentes (uma mescla de sírios, iraquianos e jordanianos), para montar um braço do grupo no país. Nas semanas seguintes à chegada de Jolani, ele desenvolveu contatos com diversas pequenas células ligadas seu congênere iraquiano. Cerca de 50% do orçamento do Estado Islâmico do Iraque reverteu ao novo front na Síria, que contou com apoio adicional das redes privadas pré-existentes da Al-Qaeda no Golfo.[1]

O braço sírio do Estado Islâmico do Iraque executou a sua primeira operação – um bombardeio suicida duplo – em 23 de dezembro de 2011, na entrada das instalações da inteligência militar, no bairro de Kafar Souseh, sudoeste de Damasco, matando ao menos 40 pessoas.[2] Uma segunda investida teve lugar em 6 de janeiro de 2012, quando um homem-bomba detonou explosivos ao lado de vários ônibus que transportavam soldados da tropa de choque no distrito al-Midan, Damasco, com um saldo de 26 mortos.[3] O grupo reivindicou a autoria do primeiro ataque em 23 de janeiro de 2012, em que formalizou a criação de seu novo braço sírio, o Jabhat al-Nusra li-Ahl al-Sham min Mujahidin al-Sham fi Sahat al-Jihad (Frente de Apoio ao Povo do Levante pelos Mujahidins do Levante no campo da Jihad) através de sua rede de imprensa, al-Manara al-Bayda. A segunda ação foi assumida apenas no dia 26 de fevereiro. Seu terceiro assalto ocorreu em Alepo, dia 10 de fevereiro, quando dois combatentes sírios detonaram seus veículos carregados de explosivos em frente aos prédios das agências de segurança nos bairros al-Arkoub e Nova Alepo, matando 28 pessoas e ferindo outras 200. Essa operação, assim como a de 6 de janeiro, foram justificadas sob o pretexto de “vingar o povo de Homs”, então sob o cerco do regime.[4]

No vídeo que anunciava a formação do Jabhat al-Nusra, Jolani declarava guerra a Assad. Acrescentava que se tratava somente de metade da luta, a outra parte sendo a aplicação da lei islâmica em toda Bilad al-Sham.[5] Afirmando que a Jabhat al-Nusra era composta por mujahidins de diversos fronts, revelou também as influências internacionais e provavelmente iraquianas na operação. O seu vocabulário indicava uma fraseologia similar à da Al-Qaeda. O fórum online Shumukh al-Islam, também usado pela Al-Qaeda e o Estado Islâmico do Iraque, serviu como seu principal canal de imprensa. Ao mesmo tempo, Jolani teve o cuidado de esconder seus vínculos programáticos com o braço da Al-Qaeda no Iraque.[6]

Jolani ainda denunciou os Estados ocidentais e suas assistências a setores da oposição síria, convocando-a a recusar quaisquer dessas ofertas. Atacou a Liga Árabe e a Turquia pela proximidade e submissão aos Estados Unidos, afirmando que o surgimento do Estado de Israel em 1948 e da República Islâmica do Irã em 1979 faziam parte da mesma campanha de guerra permanente contra o Islã sunita.

O grupo Jabhat al-Nusra apresentava-se de forma agressiva como defensor da comunidade sunita contra os “inimigos alauitas” e “agentes xiitas”. Desde o início usou uma retórica sectária, empregando termos depreciativos como rawafidh (plural de rafidhi, que significa “os que rejeitam”) em referência aos xiitas – prática comum entre os insurgentes jihadistas salafistas iraquianos, além da expressão nusairita,[7] ao invés de alauita.[8]

Após surgir em janeiro de 2012, a organização Jabhat al-Nusra recebeu declarações de apoio de ideólogos jihadistas famosos.[9] A partir de 2012, o líder da A-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, convocou os muçulmanos do Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia a somarem-se ao levante contra o “regime pernicioso, cancerígeno” de Assad, aconselhando os combatentes de oposição sírios a não contarem com a ajuda do ocidente.[10] Em março de 2012, Jabhat al-Nusra intensificou suas operações por todo país, integrando ações de pequena escala em campos de batalha, levadas a cabo por coletivos incipientes de insurgentes, participando de emboscadas guerrilheiras, executando assassinatos, e armando dispositivos explosivos improvisados (IEDs) nos subúrbios de Damasco e nas áreas rurais de Idlib, Hama e Homs.[11]

O grupo al-Nusra apresentava-se como uma ordem jihadista local da Síria, lutando contra o regime Assad, enquanto forjava alianças com outras forças militares de objetivos similares, evitando inimigos e se abstendo, pelo menos no início, da implementação de uma interpretação conservadora da sharia e de ataques às minorias religiosas. Essa foi a linha seguida pela liderança da Al-Qaeda em diversos países entre 2011 e 2013.[12] A estratégia resultou do seu fracasso em conquistar maior popularidade no Iraque devido à sua violência ou pela aplicação acelerada e extrema da sharia.[13]

A tentativa de apresentar o grupo Jabhat al-Nusra como uma corrente síria relativamente moderada, ao menos em comparação às práticas anteriores da Al-Qaeda no Iraque, não evitaram sua impopularidade no início do levante. O clima geral dentro do nascente movimento de protestos discordava das políticas da Al-Qaeda. Em princípios  de 2012, o al-Nusra teve dificuldades em encontrar aliados em campo, sendo acusado até mesmo de constituir uma criação do regime. Nas ruas, os manifestantes rejeitavam o uso de bombardeios suicidas contra prédios do Estado.

A tática suicida em praças públicas ou locais com concentrações civis foi cada vez menos adotada, enquanto outros tipos de operações militares passaram a ser empregadas ao longo de 2012 pelo grupo al-Nusra. A organização jihadista tentou reduzir as vítimas civis e limitar suas operações estritamente a alvos militares. Diferente da Al-Qaeda no Iraque, durante os dois primeiros anos do levante, Jabhat al-Nusra demonstrou uma forte sensibilidade à percepção pública. Os conselhos de Zawahiri e as lições da guerra no Iraque começaram a surtir efeito. O al-Nusra esforçou-se para evitar o descontentamento da população em geral, tentando angariar apoio.[14] Sua composição, formada sobretudo por sírios, também influenciou o comportamento de seus integrantes, que estavam atentos às reclamações dos moradores.

Entre abril e maio de 2012, Al-Nusra foi pela primeira vez alvo de uma ofensiva maior das forças do Exército Livre da Síria contra Damasco. Os subúrbios do norte da cidade tornaram-se sua fonte de recrutamento. A organização multiplicou as operações contra o regime no local, ao mesmo tempo que reivindicava atividades em Hama, Idlib, Dar’a e Deir ez-Zor.[15] Em junho, al-Nusra atingiu a taxa de 60 ataques por mês, disparando, em relação às apenas sete investidas mensais realizados em março.[16]

Em meados de 2012, diversas organizações jihadistas estrangeiras convocaram apoio ao levante sírio, encorajando-as a juntarem-se à luta.[17] Jabhat al-Nusra foi endossado por importantes intelectuais jihadistas internacionais e regionais, passando a ser visto pela comunidade salafista-jihadista mundial como “seu” grupo na Síria.[18]

Os combatentes estrangeiros começaram a chegar de modo mais ordenado à Síria em meados de 2012. A maioria dos blocos jihadistas recém surgidos, compostos na maioria por estrangeiros, diferenciava-se do Exército Livre, adotando perspectivas sectárias agressivas e recusando a linha nacionalista reivindicada quase sempre pelas brigadas do ELS, assim como substituindo a bandeira da revolução síria pela jihadista, de cor negra.[19] O isolamento ou a debilidade relativa dos jihadistas na Síria até meados de 2012 refletiu-se em uma entrevista com Omar al-Chichani, chefe militar do Estado Islâmico (EI), publicada na primeira edição do jornal do grupo, Sana al-Cham. Ao chegar em março de 2012, ele explicou ter ficado surpreso ao ver

as pessoas fumando, raspando as barbas em vez de deixá-las crescer. Escutavam canções. E as bandeiras da revolução não continham a afirmação da unicidade de Deus, la ilaha illa Allah. Eu me questionava porque estava naquele lugar. Todas essas coisas pareciam desanimadoras…[20]

Àquela altura, a cobertura de campo da imprensa britânica, francesa, árabe, alemã e em outras línguas, relatava entre 800 e 2 mil militantes estrangeiros na Síria, menos de 10% dos combatentes da oposição. A maioria chegou no início de 2012. dos países vizinhos como Líbano, Iraque e Jordânia. Um contingente menor, norte africano, veio da Líbia, Tunísia e Argélia. A presença de ocidentais durante esse período era mínima. Os combatentes vindos do exterior engajaram-se em particular nas organizações jihadistas, como Jabhat al-Nusra.[21] Aqueles que lutaram no Iraque e no Afeganistão acrescentavam habilidades militares à insurgência, na construção de artefatos explosivos improvisados para emboscadas. Essas táticas foram introduzidas pelos grupos Jabhat al-Nusra e Kataib Ahrar al-Sham.[22]

O surgimento do Estado Islâmico na Síria

No dia 9 de abril de 2013, o líder do Estado Islâmico do Iraque, Abu Bakr al-Baghdadi, declarou em público que a Jabhat al-Nusra se resumia a uma fachada colateral de seu grupo iraquiano.[23] Na mensagem, ele anunciou que ambas as ordens jihadistas operariam sob um único nome: ISIL (Estado Islâmico do Iraque e Levante). Dois dias depois, o líder do Jabhat al-Nusra, Abu Muhammad Jolani, admitiu ter lutado no Iraque sob o comando de Baghdadi e que o Jabhat al-Nusra angariou fundos, armas e combatentes enviados pelo Estado Islâmico do Iraque. Jolani agradeceu aos iraquianos, mas rejeitou a unificação anunciada por Baghdadi. Ao finalizar sua resposta, reafirmando a identidade jihadista do Jabhat al-Nusra, renovou sua fidelidade ao líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, um árbitro em potencial do conflito, que Jolani sabia ser favorável ao seu grupo.[24]

Deserções, brigas internas e um colapso nas operações começaram a proliferar no seio do al-Nusra, enquanto seus integrantes se dividiam cada vez mais sobre quem comandava o campo de batalha. Dois meses após as declarações de Baghdadi, a arbitragem de Zawahiri veio redigida em uma carta desautorizando-o a confirmar a fusão sem lhe consultar, ou notificar a direção da Al-Qaeda. Ao mesmo tempo, argumentava que Jolani também errou ao anunciar a sua rejeição ao ISIL, e divulgar seus vínculos à Al-Qaeda sem a sua autorização prévia. Zawahiri dissolveu o ISIL e resolveu manter o espaço institucional da Síria com o Jabhat al-Nusra, comandado por Jolani, enquanto a jurisdição de Baghdadi se limitava ao Iraque. Ele nomeou Abu Khaled al-Suri, ex-membro da Al-Qaeda e integrante, na época, do grupo Ahrar al-Sham, como delegado da Al-Qaeda para arbitrar entre as duas entidades.[25]

Baghdadi reprovou a epístola de Zawahiri, recusando-se a se submeter às suas ordens. Insistia que as fronteiras entre a Síria e o Iraque constituíam limites artificiais e ilegítimos, impostos pelas potências imperialistas do Ocidente ao final da Primeira Guerra Mundial.[26]

A maioria dos soldados do Jabhat al-Nusra aderiram ao ISIL, em particular os voluntários não-sírios. Estimou-se que 80% dos muhajiin (combatentes estrangeiros) na Síria juntaram-se às fileiras do ISIL.[27] No início de maio de 2013, a maioria das forças do comando Muhajirin wa-Ansar – uma brigada de combatentes vindos quase todos do Cáucaso e da Ásia Central – também fundiram-se ao ISIL. Seu emir, Omar al-Shishani, jurou fidelidade à Baghdadi e foi nomeado wali (governador) das regiões de Alepo, Idlib e Lataquia. O ISIL recebeu aprovação também das tribos sírias que juraram lealdade a Baghdadi, em especial no norte de Alepo e Raqqa. Na província de Deir ez-Zor, o grupo Jabhat al-Nusra conquistou o respaldo das tribos, dado que diversos de seus comandantes vinham da região. Muitos líderes regionais também atuaram para controlar os poços de petróleo, cujos lucros enriqueceram al-Nusra e as tribos em pouco tempo.[28]

Porém, antes do verão de 2013, a relação entre os dois atores oscilava muito por região, algumas áreas sendo marcadas pela oposição prolongada entre ambos os grupos, enquanto, em outras, colaboraram com frequência.

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Rivalidades entre fundamentalistas

            A repressão imposta pelo regime impediu de maneira decisiva o desenvolvimento de uma alternativa democrática na Síria, com as fragmentações entre os grupos do ELS, e a inação das potências ocidentais, minando a oposição secular e favorecendo os fundamentalistas islâmicos e os jihadistas. Concomitantemente, o aumento dessas forças no campo militar incluiu também seu fortalecimento nas áreas controladas pelos grupos de oposição. Esse novo poder criou instituições próprias – como os comitês Sharia – para consolidar a gestão de recursos e instalações públicas.[29] Eles começaram a despontar nas áreas livres do regime, chocando-se com os conselhos pré-existentes. Ainda que tenham conseguido, no início, restaurar alguma estabilidade e segurança em certos desses locais,[30] tudo indica que tais conselhos serviram de espaço para julgamentos injustos, ilegais e retaliatórios.[31] Eles impuseram a autoridade das organizações fundamentalistas e jihadistas, islamizando as leis e a população, enquanto supostamente davam legitimidade à repressão contra forças e grupos opositores.[32]

Os conselhos locais, em diversos bairros e cidades, sofreram também com a intervenção dos grupos armados de oposição, sobretudo das forças fundamentalistas islâmicas nas zonas oposicionistas. O judiciário, uma das funções que esses conselhos tentavam garantir, foi sujeito a inúmeras transformações. A maior parte das instituições judiciárias que começaram como “tribunais” civis independentes, converteram-se em “Comitês ou Conselhos de Sharia”, sob pressão das brigadas de oposição. Eles não reconheciam qualquer outra autoridade, exceto a sua própria. Isso contribuiu para o declínio dos conselhos locais, cuja influência limitava-se aos civis, sem alçada sobre os combatentes da oposição armada. A repressão contra os líderes do ELS e dos ativistas da sociedade civil também aumentou com a proliferação dos conselhos Sharia, levando a prisões generalizadas em torno das acusações de espionagem e apostasia.[33] Os clérigos que não compartilhavam das ideias dos conselhos eram expulsos da região, substituídos por outros que adotavam correntes de ensinamentos jihadistas ou salafistas.[34]

As entidades salafitas e jihadistas também criaram sua polícia religiosa. Em Idlib, o grupo Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), chefiado pela Jabhat al-Nusra, começou com uma agência Hisbah (polícia religiosa) e, depois, um Comitê para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício – impondo uma série de restrições sobre vestuário, barbearias, fumo, música e o convívio entre gêneros nas festas. As ações dos comitês ainda incluíam o monitoramento comportamental nos hospitais, centros de saúde e escolas, através de patrulhas diárias. Vigiavam as equipes médicas, obrigando trajes segundo diretrizes Sharia, e cuja violação resultava em sanções.[35] Em junho de 2017, o HTS estabeleceu o Sawa’id al-Khair, ou “Corpo da Boa Vontade”, filiado à polícia da moral religiosa, decretando suas leis nas ruas e vigiando as pessoas.[36] O grupo Jaysh al-Islam, de maneira similar, criou a sua Instituição, uma forma de polícia religiosa, na parte leste de Ghouta. Por cerca de 200 dólares ao mês os informantes relatavam violações, incluindo críticas ao Jaysh al-Islam, “blasfêmia”, emprego de linguagem vulgar, e o uso, pelas mulheres, de “roupas indecentes”.[37] Segundo Sabr Darwish, a propagação da anarquia e do caos foram catalisadas por essas iniciativas, com vários grupos armados de oposição competindo para tentar impor suas próprias medidas autoritárias nas zonas de influência dos demais.[38]

O controle e a distribuição de recursos, nas áreas oposicionistas, também foi objeto de disputa. Em algumas zonas que dominavam, membros do grupo jihadista al-Nusra confiscavam com frequência suprimentos destinados aos conselhos locais, prejudicando o abastecimento em seus próprios bairros.[39] O Jaysh al-Islam também aumentou seu poderio na partilha de alimentos através de túneis próprios (comentado mais adiante neste capítulo), monopolizando ainda a distribuição dos postos de trabalho em Douma nos anos seguintes. O grupo abriu uma central que alocava os candidatos disponíveis, quase sempre sob o domínio da facção armada. Eles exigiam autorização até para iniciativas privadas, como abertura de lojas, instituições de caridade e farmácias.[40]

O acesso aos recursos, na esfera política e militar, foi essencial. O controle dos postos de fronteira com a Turquia, por exemplo, contribuiu de maneira vital para alguns grupos de oposição acumularem capital. A Brigada Tempestade do Norte, filiada ao ELS, usou a captura da estação de Bab al-Salama, na divisa com a Turquia, em 2012, para monitorar as rotas-chave de suprimentos e distribuição de bens para grupos armados da oposição. Junto às suas atividades paralelas de contrabando e sequestros, o domínio da fronteira transformou-se em negócio lucrativo. Principal posto na divisa síria-turca, Bab al-Salama era o ponto de entrada da maioria dos produtos e da assistência humanitária à Síria. Após tensões com outros batalhões pela travessia, a brigada vinculada ao ELS foi forçada a selar um acordo com o grupo Liwa al-Tawhid pela gestão  compartilhada da fronteira (e provavelmente dos lucros), enquanto diminuíram as taxas e encargos sobre a circulação de mercadorias e pessoas.[41] O Ahrar al-Sham, única autoridade a controlar a travessia de Bab al-Hawa, obtinha entre 3,6 e 4,8 milhões de dólares por mês entre 2015 e 2016.[42] Esses postos eram responsáveis pelas principais disputas militares internas entre os diversos grupos armados de oposição, principalmente nos conflitos entre o HTS e o grupo Ahrar al-Sham, iniciados em julho de 2017.

O setor petroleiro também estimulou confronto e embates no seio da oposição. Entre 2012 e 2013, uma nova economia do petróleo surgiu ao leste e ao norte da Síria. Tribos e clãs em Deir ez-Zor e ao sul de Hasakah tomaram as operações dos poços em dezenas de campos. A maioria localizava-se em áreas antes sob comando das empresas Shell (al-Furat) e Total (Jafra). Os novos operadores negociavam acordos com os grupos militares governantes na região, vendendo o óleo cru a comerciantes, que o transportavam para centros e refinarias próximas à divisa turca, em cidades como Manbij, Ras al-Ayn (Serekaniye) e Tal Abbyad. Os círculos armados de oposição e seus caudilhos locais criaram refinarias básicas nesses territórios, encomendando canos, cilindros e os tanques necessários às empresas siderúrgicas turcas.[43]

Diversas facções lucraram com a exploração desses campos. Inicialmente, a economia petroleira no setor sírio de Jazira era controlada pelos grupos Jabhat al-Nusra e Ahrar al-Sham, supervisionados pelas cortes Sharia, estabelecidas por eles nas principais cidades. O ISIL começou a envolver-se nas transações entre o início e meados de 2013, enquanto expulsavam seus rivais de Raqqa.[44] Ao final de 2014, os campos de petróleo e gás estavam divididos entre o regime sírio, as forças curdas do Partido da União Democrática (PYD) e o Estado Islâmico, que comandava a maior parte deles, assim como, em 2015, diversos campos de gás. Essas extensões foram perdidas ao longo dos anos, após os avanços militares das forças pró-regime, mas, acima de tudo, das Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas pelas facções armadas curdas das Unidades de Proteção Popular (YPG), com a assistência dos EUA (ver capítulo 5). Ao final de 2018, as áreas sob o FDS continham 90% das reservas sírias de ambos os insumos, incluindo a unidade de gás natural de Conoco, o maior da Síria antes do conflito, e o de petróleo de Al Omar, o mais extenso e lucrativo do país.[45]

Alguns batalhões da oposição também lucraram com os cercos, confiscando sem remorso os principais suprimentos civis para o próprio batalhão, ao passo que as frentes populares e os conselhos locais tentavam atender as necessidades básicas dos cidadãos. Na região sitiada no leste de Ghouta, por exemplo, determinados setores dessa oposição cavaram túneis até os bairros de Barzeh e Qaboun para tirar proveito do tráfico de inúmeras mercadorias. O Jaysh al-Islam e os empresários associados a entidades monopolizaram, na prática, as importações de alimentos, ao dominarem tais áreas, em particular depois de 2016. Permitiam aos comerciantes circular produtos não alimentícios como cigarros, com altos lucros comerciais.[46] O controle dos túneis desencadeou uma onda de choques entre vários desses grupos armados. Ghouta foi cenário de não poucos protestos de rua, em que os civis os acusavam de lucros abusivos, e do confisco de víveres e outros artigos, ao invés de superar as divisões entre si, unindo-se contra o regime.[47]

Conflitos e rivalidades entre os numerosos blocos armados também aumentaram a partir de meados de 2015, com destaque às áreas do norte, sob a coalizão Jaysh al-Fateh, e os subúrbios de Damasco. As lutas internas na província de Idlib e nos subúrbios de Damasco levaram a manifestações recorrentes entre habitantes locais. Eles exigiam uma frente única das oposições armadas, rejeitando, ao mesmo tempo, em suas regiões, o domínio autoritário desses grupos.

A queda da região leste de Ghouta, em março de 2018, resultou também das contínuas hostilidades e rixas entre os diferentes grupos que controlavam essas áreas, em particular o Faylaq al-Rahman e o Jaysh al-Islam. A rivalidade persistiu inclusive ao longo da ofensiva do regime no setor, com ambos trocando acusações mútuas de traição.[48]

O mesmo problema eclodiu com frequência no noroeste do país.[49] De meados até o final de 2018, a maior parte das tensões e divergências internas nessas áreas centraram-se em torno dos dois principais agrupamentos armados de oposição – a coalizão jihadista do HTS (liderada pelo Jabhat al-Nusra, cuja origem remete à Al-Qaeda), contra uma confederação de facções apoiada pela Turquia (dominada por grupos salafistas como Jaysh al-Islam e Ahrar al-Sham, ao lado de outros menores e ex-integrantes do ELS), sob o guarda-chuva da Frente de Libertação Nacional (FLN). Em fins de 2018, o HTS controlava cerca de 60% da província de Idlib. Novos confrontos ocorreram entre ambos em princípios de janeiro de 2019. O HTS ganhou território, capturando quase uma dezena de cidades e vilarejos dos rivais da oposição síria.[50] As conquistas militares do HTS levaram ao colapso das facções Harakat Nour a-Din al-Zinki, do FLN no oeste de Alepo, e do Ahrar al-Sham na região de Sahel al-Ghab, no norte da Província de Hama. Ao mesmo tempo, o Governo de Salvação Sírio, o órgão de gestão afiliado ao HTS, ampliou sua autoridade sobre os espaços capturados, assumindo tarefas administrativas, civis e judiciárias.[51]

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Turquia, expandindo sua relevância na Síria

Os vínculos entre o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) na Turquia e o regime sírio, após a chegada de Bashar al-Assad, expandiram-se de forma significativa, em particular depois de 2004. Ambos os Estados organizaram encontros conjuntos, mencionando “laços de família”, ao referirem-se aos contatos bilaterais. Erdogan costumava passar as férias com a família Assad.[52] O Acordo de Livre Comércio de 2007 e o de Isenção de Vistos de 2009 reforçaram ainda mais as conexões sírio-turcas. O volume comercial subiu de 796 milhões de dólares em 2006 para 2,5 bilhões em 2010, dando grandes vantagens à Turquia, como mencionado no Capítulo 1. Em fevereiro de 2011, durante o lançamento da pedra fundamental de uma “represa da amizade” conjunta no rio Orontes, Erdogan declarou “sempre afirmamos que não deve haver problemas entre irmãos”.[53]

Antes de 2011, sob a direção do AKP, a Turquia aumentou em termos qualitativos sua influência política e econômica na região, após a invasão liderada pelos EUA e o Reino Unido no Iraque, em 2003. A sua economia, impulsionada por exportações, cresceu de modo acelerado, abrindo novos mercados no Oriente Médio.[54]

Após o início do levante sírio em março de 2011, Erdogan aconselhou Assad a fazer algumas concessões aos manifestantes, reformas menores, para apaziguá-los, ao invés de uma modificação radical na composição do Estado. No entanto, as vinculações começaram a piorar após a visita à Damasco do ministro turco de Relações Exteriores, Ahmed Davutoglu, em 9 de agosto de 2011, quando entregou uma mensagem pedindo o fim à violência e a aprovação de um plano de paz bancado pela Turquia. Assad e os integrantes do governo rejeitaram a mediação e as propostas de Ankara. Ao final, a recusa do regime de se engajar a qualquer uma das recomendações turcas, somada a um forte incentivo oficial dos Estados Unidos, levou o então primeiro-ministro Erdogan a pedir em público, no início de setembro de 2011, a renúncia de Bashar al-Assad. Uma última tentativa aconteceu em outubro, com nova visita do Ministro do Exterior turco, porém mais uma vez não foi possível chegar a qualquer acordo político patrocinado pela Turquia.[55]

A partir de 2012, as armas compradas pela Arábia Saudita e pelo Catar foram transferidas às diversas correntes de oposição, através do aeroporto turco de Esenboğa, em Ancara. O governo turco estava ciente da operação, integrando e monitorando as entregas transportadas por terra para a Síria.

Logo, no entanto, a principal preocupação da Turquia era a crescente influência do PYD e o seu controle nas regiões sírias de maioria curda, após a retirada do regime de algumas áreas próximas à fronteira turca, no verão de 2012. Para combater a progressivo prestígio das forças do PYD, desde o final de 2011 até 2014, o governo turco fez vista grossa aos fluxos de combatentes estrangeiros ao longo da fronteira síria. Isso forneceu recrutas e liberdade de ação aos fundamentalistas islâmicos e jihadistas, permitindo o desenvolvimento de redes transfronteiriças, que ajudavam na preservação econômica desses grupos.[56] O governo turco via alguns benefícios em seu progresso, à medida em que combatiam o PYD e o regime sírio. A Turquia também apoiou outros batalhões importantes no noroeste da Síria – incluindo o Faylaq al-Sham e o al-Jabha al-Shamiyeh, que mantinham conexões com a Irmandade Muçulmana e diversas organizações turcomenas armados, criadas e equipadas por Ancara. O Jaysh al-Islam, antes próximo da Arábia Saudita, também passou a ser influenciado pela Turquia, após a retirada de seus destacamentos do leste de Ghoutha para o norte da Síria, conforme o regime assumia o controle dessas áreas em abril. Como mencionado antes, no verão de 2018 a Turquia respaldou o surgimento da Frente de Libertação Nacional, que juntou várias forças armadas da resistência, em especial as fundamentalistas islâmicas, atuando como subordinadas a Ancara.

O governo turco, no início, também resistiu em se juntar à coalizão internacional dirigida pelos EUA contra o Estado Islâmico do Iraque e Levante, argumentando que a guerra não deveria ser limitada ao grupo jihadista, tendo que se voltar também à derrubada do regime sírio. Recusaram o uso das bases aéreas turcas de Incirlik e Diyarbakir pelos Estados Unidos para fazer operações de bombardeio contra alvos do EI na Síria até julho de 2015. No entanto, Ancara mudou sua posição depois que um soldado turco foi morto em um ataque do Estado Islâmico, e após um bombardeio suicida na cidade turca de Suruc, em 20 de julho, contra o centro cultural de Amara. O local sediava um encontro de 300 jovens turcos de esquerda, membros da Federação de Associações de Jovens Socialistas. O homem-bomba, um cidadão turco e membro do EI, matou 32 pessoas. Depois dessa tragédia, a Turquia enfim tomou a decisão, em meados de 2015, de lançar uma ofensiva de bombardeios contra vários locais do EI na Síria, permitindo o uso das suas bases militares por aviões dos EUA.[57] No entanto, a força aérea turca continuava a priorizar alvos curdos, não os do Estado Islâmico.

Ancara mantinha uma atitude ambivalente no que tangia outro grupo jihadista, o Jabhat al-Nusra, apoiando a coalizão Jaysh al-Fateh, liderada pelo Jabhat al-Nusra e Ahrar Sham, acompanhados por frentes islâmicas e do Exército Livre da Síria, além de vários outras pequenas facções próximas ao ELS.[58] Em outubro de 2017, soldados turcos receberam uma escolta armada da coalizão jihadista HTS (Hay’at Tahrir al-Sham ou Organização para a Liberação do Levante)[59] ao entrarem em Idlib, permitindo que as tropas turcas monitorassem e contivessem unidades curdas do YPG no seu reduto de Afrin. Em uma entrevista ao canal al-Jazeera, o chefe do bureau político do HTS, Yousuf al-Hajar, disse que sua organização mantinha vínculos estreitos com a Turquia, descrita como aliada.[60] Em geral, o HTS se convivia de forma pragmática junto à inteligência turca, sem se submeter por inteiro, como em agosto de 2018, ao rejeitar o decreto de Ancara em Idlib, ordenando a sua dissolução e fusão à coalizão da Frente Nacional de Libertação, liderada por Ahrar al-Sham, Jaysh al-Islam, Nour a-Din al-Zinki e grupos armados próximos da Irmandade, apoiados por Ancara. Após essa recusa, a Turquia designou o HTS como terrorista, continuando a pressioná-lo,[61]estimulando divisões internas, enquanto mantinha contatos com a organização. No início de janeiro, o líder do HTS, Abu Muhammad Jolani, chegou a declarar apoio à meta turca para controlar o leste do rio Eufrates, então dominado pelo PYD e considerado um inimigo da revolução pelos jihadistas.[62]

Em 2016, em particular após a tentativa fracassada de golpe de Estado por uma fração do exército na Turquia, em julho, Ancara deixou de considerar a queda de Assad uma prioridade, concentrando-se a derrotar as correntes nacionalistas curdas, na Turquia assim como na Síria. Durante esse período, o AKP realizou uma nova reaproximação com o governo russo, após quase um ano de altas tensões.[63] Em dezembro de 2016, jatos russos assistiram aos destacamentos militares turcos, pela primeira vez, em suas operações no norte da Síria, bombardeando alvos do EI, integrando a campanha mais ampla do “Escudo do Eufrates”.[64] A operação teve sucesso na erradicação do EI da fronteira turca, evitando também que o PYD-YPG conectassem o seu território principal no nordeste da Síria com a cidade de Afrin.

As repetidas intervenções militares por tropas turcas na Síria, desde o verão de 2016, no quadro da operação Escudo do Eufrates, e depois em Afrin, em março de 2018, expandiram com velocidade a influência de Ancara sobre as regiões recém-conquistadas. Apoiaram a retomada de serviços, como instalações médicas, hospitais e escolas, nas regiões antes ocupadas pelo EI, impondo seu próprio domínio e desconsiderando as estruturas de governança local em Jarablus, após a expulsão do Estado Islâmico em 2016,[65] e substituindo as antigas estruturas do PYD em Afrin. O correio turco abriu filiais em Jarablus, al-Bab e Cobanbey (em árabe, al-Rayi),[66] também erguendo torres para as empresas turcas de telecomunicações e abrindo universidades patrocinadas pela Turquia em várias cidades. Treinaram centenas de sírios, formando uma nova guarda armada de segurança, composta pela polícia comum e unidades especiais. Junto a essa política, as famílias dos combatentes armados de oposição, vitimados na campanha militar “Ramo de Oliveira”, e durante a subsequente ocupação turca de Afrin, em março de 2018, também receberam pagamentos de gratificação por morte do governo da Turquia.[67]

Mulham Jazmati, pesquisador do Fórum Econômico Sírio, declarou que as metas da Turquia nessa área não eram apenas militares, mas também econômicas. Como os grandes investimentos na cidade de Qabsein, na região de al-Bab, em dezembro de 2017, onde o conselho local assinou um Memorando de Entendimento com uma empresa turca de construção para erguer um projeto residencial na área, incluindo 225 apartamentos e cerca de 30 lojas no estilo turco. Ele argumentava que Ancara queria “impor a sua administração na região norte, devido ao seu valor estratégico e, mais importante, para evitar a formação de um futuro Estado curdo unificado nas suas fronteiras.”[68]

Sob os auspícios da Turquia, a construção da Primeira Cidade Industrial no norte da Síria, a alguns quilômetros a noroeste de al-Bab, também foi inaugurada em fevereiro de 2018, com a cooperação do conselho de al-Bab e de um grande número de industriais e comerciantes. Esperava-se que essa cidade industrial impulsionasse a economia local, promovendo oportunidades de emprego para milhares de jovens.[69] Em meados de março de 2018, o conselho de Azaz assinou um acordo com uma empresa turca chamada ET Energy, para construir uma usina geradora de energia com capacidade de 30 megawatts, fornecendo eletricidade para a cidade e entornos, e provando a disposição de Ancara em investir e permanecer na região.[70] Em julho de 2018, o conselho de al-Bab emitiu novos documentos de identidade (cerca de 140 mil), para a população urbana e arredores – traduzidos ao turco e compartilhados com as autoridades turcas.[71]

Através dessas políticas e do desenvolvimento de infraestruturas para fomentar uma base popular, Ancara também almejava a possibilidade de relocar setores de refugiados sírios residentes na Turquia a essas áreas. Em março de 2018, 140 mil refugiados sírios da Turquia retornaram a essas zonas,[72] uma quantidade pequena, se comparada aos cerca de 3,4 milhões deles. Na verdade, a polícia de fronteira evitava cada vez mais que os refugiados sírios cruzassem para a Turquia, usando de violência, e até mesmo atirando para matar em uma série de casos. Em 2014, como parte de medidas extraordinárias de segurança para evitar a chegada em massa de refugiados, o país começou a construir um muro na divisa com a Síria.

Bandeiras turcas, cartazes e testemunhos de apoio a Erdogan multiplicaram-se nos territórios controlados pela Turquia, promovidos, notadamente, por patentes militares locais turcas e seus subordinados sírios. No entanto, sua crescente influência não se deu sem oposição. As forças turcas e a Brigada Sultan Murad, uma frente oposicionista de maioria turcomena estabelecida pela Turquia, foram acusadas de favorecerem seus compatriotas no Distrito de Jarablus, cedendo a eles os melhores serviços e a maior parte dos empregos. Nesse ínterim, a interferência turca nos assuntos locais foi condenada em inúmeras ocasiões, como durantes protestos por manifestantes contra o hasteamento de bandeiras turcas em uma escola de Jarablus.[73] A Turquia também restringiu, ou até baniu, o trabalho humanitário de entidades sírias e internacionais em Jarablus, e outras áreas que controlava, permitindo somente às organizações turcas esse tipo de atividade.[74]

Em outubro de 2018, um relato do sítio eletrônico Syria Direct expôs a profunda influência e dominação da Turquia sobre todos os aspectos da sociedade, nos territórios em que mantinham seus destacamentos, afirmando:

moradores, rebeldes e autoridades locais da oposição sugerem ter ocorrido uma expansão gradual do papel da Turquia no norte da Síria, partindo do setor de segurança, atingindo a maior parte dos aspectos da vida política e civil – tribunais, escolas e líderes religiosos – e mesmo as minúcias de prestações de serviços e registro civil. Os próprios conselhos locais – corpos administrativos civis que antes respondiam direto ao Governo Interino da resistência síria – agora operavam sob a direção dos “walis” turcos ou dos governadores das províncias turcas vizinhas (…).[75]

Como mencionado no capítulo anterior, as ambições e interesses da Turquia na Síria mudaram ao longo do conflito, direcionando-se cada vez mais contra as forças do PYD curdo. Suas iniciativas abrangiam a ocupação direta de territórios por múltiplas intervenções, e o uso de seus subordinados nas zonas de fronteira do norte da Síria, construindo uma frente local que lhe permitisse influenciar a política no país a serviço dos seus interesses. Isso foi simbolizado pelas declarações de Erdogan após o anúncio da retirada do YPG de Manbij e a entrada do exército do regime sírio em dezembro de 2018: “A Turquia não terá mais nada a fazer na cidade de Manbij, visto que as “organizações terroristas” do YPG deixarem a área.”[76] Concomitantemente, o ministro de Relações Exteriores turco, Mevlut Cavusoglu, também declarou no Fórum de Doha, no Catar, que Ancara estava preparada a se engajar com Damasco se Assad realizasse e vencesse eleições livres e justas.[77] A ideia de derrubar o regime há muito havia desaparecido.

(…)

Estado Islâmico, ainda uma ameaça

 

A organização jihadista seguia representando, ao final de 2020, uma ameaça e um desafio à tranquilidade, em particular após as mudanças de estratégia do Estado Islâmico, que passou a se concentrar em ataques suicidas nas áreas civis, para desestabilizar vilarejos e cidades controladas pelo governo. Já o grupo Jabhat al-Nusra, após perder território para as forças pró-Assad, passou a se concentrar cada vez mais na região de Idlib, a partir de 2017, retornando também à tática de atos suicidas para tentar recuperar sua dinâmica inicial. Em fevereiro de 2017, o Jabhat al-Nusra levou a cabo ações desse tipo em duas instalações de segurança em Homs, matando 50 pessoas e ferindo 24. Em março do mesmo ano, duas operações similares tiveram como alvo Damasco. Primeiro, em 11 de março, um duplo ataque a bomba mirou os xiitas que visitavam um local de peregrinação na capital, matando 74 deles.[78]Alguns dias depois, em 15 de março, mais dois assaltos suicidas causaram a morte de pelo menos 31 pessoas, ferindo outras dezenas no centro da cidade.[79]

Em uma declaração de áudio, em 23 de abril, o líder da Al Qaeda, Ayman al-Zawahiri, convocou os jihadistas sunitas sírios a travarem uma ampla guerra de guerrilha contra Assad, seus correligionários apoiados pelo Irã, assim como as potências ocidentais, instigando-os a se prepararem para “uma longa batalha com os cruzados e seus aliados, os xiitas e alauítas.”[80] Em uma nova mensagem, em fevereiro de 2018, Zawahiri pediu aos jihadistas na Síria “que se socorram, se associem, se reúnam, se fundam, se assistam, e se unifiquem como categoria única” exaltando as várias facções a “enterrar seus desacordos.”[81] O HTS (liderado pelo grupo Jabhat al-Nusra), mesmo tendo cortado relações oficiais com a al-Qaeda, mantém vínculos com aparatos militares ligados às redes jihadistas no norte da Síria, cedendo-lhes territórios e recursos. Na região de Idlib, várias correntes jihadistas mantiveram suas relações oficiais com a al-Qaeda, incluindo o Hurras al-Din, formado por vários milhares de combatentes sírios e estrangeiros, incluindo veteranos do Iraque e do Afeganistão; assim como o Partido Islâmico do Turquestão. Ambos lutaram ao lado do HTS durante a conquista de Idlib, contra os grupos da NLF apoiados pela Turquia.[82] No entanto, o HTS se concentrou cada vez mais em governar as áreas sob seu controle, evitando, desde 2019, ações em setores dominados pelo regime.

Os territórios do Estado Islâmico, entre 2016 e 2018, foram hostilizados por várias forças locais, regionais e internacionais. Contudo, em escala internacional, seus operadores ainda conseguiram realizar mais de 1.400 ataques em 2016, matando mais de 7.000 pessoas, um aumento em torno de 20% em relação a 2015, segundo o banco de dados de terrorismo global da universidade de Maryland.[83]

O ano de 2017, no entanto, marcou um ponto de inflexão. Primeiro, o Estado Islâmico foi derrotado na cidade iraquiana de Mosul em junho, após uma ofensiva de nove meses com apoio aéreo e terrestre de uma coalizão multinacional liderada pelos EUA. Também perderam Raqqa, em meados de outubro, após uma ofensiva de quatro meses do SDF, apoiado pela força aérea dos EUA. Depois de Raqqa, o exército sírio e seus correligionários assumiram controle total em Deir ez-Zor em novembro. Essas perdas de território, no entanto, não impediram que o Estado Islâmico aumentasse seus atos suicidas e carros-bomba em várias regiões do país, além de assassinar civis nas áreas evacuadas por seus soldados.[84] Em dezembro de 2017, por exemplo, o EI reivindicou a responsabilidade de um atentado a um ônibus, matando oito pessoas e ferindo outras dezoito no bairro de Akrama, em Homs, de maioria alauita.[85]

A perda contínua de espaços por essas organizações não significou sua eliminação ou o encerramento de suas habilidades para realizar ações terroristas nas áreas dominadas pelo regime. Soldados do EI, em julho de 2018, por exemplo, mataram pelo menos 250 civis em um ataque meticuloso e devastador em Suwayda, cidade de maioria drusa, controlada pelo regime, conforme a estratégia de insurgência que passou a adotar.

O Pentágono e as Nações Unidas estimaram, em agosto de 2018, que o Estado Islâmico ainda tinha mais de 30.000 combatentes no Iraque e na Síria.[86] Em um relatório anual sobre a luta antiterrorista dos Estados Unidos pelo mundo, o Departamento de Estado declarou que o EI, a Al Qaeda e entidades afiliadas, apesar de enfraquecidos, “provaram ser resilientes, determinados e adaptáveis, ajustando-se a níveis elevados de pressão antiterrorista no Iraque, Síria, Afeganistão, Líbia, Somália e Iêmen, entre outros países”.[87] Em meados de janeiro de 2019, um assalto a bomba reivindicado pelo EI causou a morte de 16 pessoas em Manbij, incluindo quatro americanos (dois soldados e dois civis que prestavam serviços para os militares dos EUA), ao lado de cinco combatentes das FDS. Esse foi a mais mortífera ação contra as forças dos EUA na Síria, desde a tomada do espaço em 2015.[88]

As investidas do Estado Islâmico no Iraque e na Síria dispararam em 2020, expressando sua capacidade e disposição para retomar territórios, populações e recursos. Em agosto de 2020, estimava-se em mais de 10.000 o número de seus combatentes ativos em ambos os países, dois anos após a derrota do grupo militante. O EI continuou a expandir nas áreas consideradas libertas pelo regime Assad, assim naquelas controlados pelos curdos das Forças Democráticas Sírias, apoiadas pela coalizão norte-americana. A crescente insurgência é exacerbada por relatos de fuga dos centros de detenção pelos militantes do Estado Islâmico, incerteza sobre o que fazer com os presos e suas famílias, a continuação da guerra civil síria e os interesses estratégicos concorrentes de influências externas.

Apesar da derrota territorial do EI em março de 2019, seus ataques usando células infiltradas continuaram. Em 2020, a maioria das atividades do Estado Islâmico ocorreu na província de Deir ez-Zor, seguido pela de Raqqa. Entre março de 2019 e janeiro de 2020, 1.959 soldados do regime foram mortos em ações, bombardeios e emboscadas do EI, principalmente a oeste do rio Eufrates e nos desertos de Deir ez-Zor, Homs e Sweida.

 

 

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[1] Lister, 2015, p. 56-68.

[2] Casey-Baker e Kutsch, 2011.

[3] Shadid, 2012.

[4] Lister, 2015, p. 64.

[5] Bilad al-Sham refere-se à Grande Síria e, geralmente, inclui a Síria, o Líbano, a Palestina e o oeste do Iraque.

[6] Lister, 2015, p. 51, 59, 64; Hassan e Weiss, 2015, p. 149-150.

[7] Nusairita refere-se ao fundador da religião alauita, Abu Shuayb Muhammad Ibn Nusayr. Essa denominação é usada para caracterizar a religião alauita como seguidora de um homem, e não de Deus e, portanto, sem inspiração divina.

[8] ICG, 2012b, p. 11.

[9] Lister, 2015, p. 59-60; O’Bagy, 2012b, p. 31.

[10] The Guardian, 2012.

[11] Lister, 2015, p. 71.

[12] Lister, 2015, p. 67.

[13] Hassan e Weiss, 2015, p. 150; Lister, 2015, p. 56-58.

[14] O’Bagy, 2012b, p. 36-37; Lund, 2012, p. 29.

[15] Lister, 2015, p. 73.

[16] ICG, 2012a, p. 11.

[17] O’Bagy, 2012b, p. 30-31; Lister, 2015, p. 73.

[18] Lund, 2012, p. 25.

[19] Macfarquhar e Saad, 2012.

[20] Sana al-Sham, citado em Syrian Freedom Forever, 2013c.

[21] Zelin, 2012.

[22] ICG, 2012b, p. 19.

[23] Hassan e Weiss, 2015, p. 184.

[24] Caillet, 2013.

[25] Atassi, 2013; Hassan e Weiss, 2015, p. 184-185.

[26] Hassan e Weiss, 2015, p. 185-186.

[27] Ghaith, 2013.

[28] Caillet, 2013.

[29] Hassan e Weiss, 2015, p. 225.

[30] Sly, 2013.

[31] Hanna, 2016.

[32] Pierret, 2013.

[33] Al-Haqq, 2016.

[34] Darwish, 2015, p. 65-69.

[35] Souriatna, 2018.

[36] Arfeh, 2018.

[37] Zaza, 2017.

[38] Darwish, 2016e, p. 3.

[39] Arfeh, 2016.

[40] Zaza, 2017.

[41] Abboud, 2016; Baczko, Dorronsoro e Quesnay, 2016, p. 140.

[42] Tokmajyan, 2016, p. 3.

[43] Butter, 2015, p. 7.

[44] Butter, 2015, p. 18.

[45] Kabalan, 2018; Osseiran, 2018.

[46] Lund, 2016d.

[47] Lund, 2017c.

[48] Lund, 2018a.

[49] O Noroeste pode ser dividido em três áreas: al-Bab, Afrin e Idlib.

[50] Clark e Hourani, 2019.

[51] Abdulssattar Ibrahim, Hamou e al-Maleh, 2018.

[52] Wieland, 2012, p. 57.

[53] Davis e Ilgit, 2013.

[54] Phillips, 2016, p. 35.

[55] Wieland, 2012, p. 57.

[56] Chivers e Schmitt, 2013; Itani e Stein, 2016, p. 7-8.

[57] Ackerman, Letsch e Shaheen, 2015.

[58] Itani e Stein, 2016, p. 8; Tokmajyan, 2016, p. 5.

[59] O HTS surgiu do que era a Frente Nusra, o braço oficial da Al-Qaeda na Síria.

[60] MEMRI, 2018.

[61] Lund, 2018b.

[62] Rudaw, 2019.

[63] Nashashibi, 2016.

[64] Coskun e Karadeniz, 2016.

[65] Haid, 2017b, p. 9.

[66] All4Syria, 2017b.

[67] Tastekin, 2018.

[68] Citado em Enab Baladi, 2018b.

[69] Al-Khateb, 2018.

[70] Enab Baladi, 2018c.

[71] The Syria Report, 2018q.

[72] Uras, 2018.

[73] Enab Baladi, 2016b; Haid, 2017b, p. 18.

[74] Haid, 2017b, p. 15.

[75] Brignola, Hamou e al-Maleh, 2018.

[76] Yeni Safak, 2018.

[77] Al-Jazeera English, 2018.

[78] Perry, 2017.

[79] Reuters, 2017f.

[80] Reuters, 2017b.

[81] Hoffman, 2018.

[82] Moutot, 2019.

[83] Bhojani, 2017.

[84] Reuters, 2017a.

[85] Nassar, Nelson e al-Zarier, 2017.

[86] Britzky, 2018.

[87] Citado em Landay, 2018.

[88] Mcdowall e Stewart, 2019.

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